Para entender melhor o panorama existente nos Açores em relação aos processos que tramitaram perante o Tribunal do Santo Ofício, território autônomo de Portugal, durante os séculos XVI, XVII e XVIII, necessário se faz explanar sobre a conversão obrigatória dos judeus na Península Ibérica.
Inicialmente, devemos registrar que há provas
documentais da presença de judeus na Península Ibérica desde a Antiguidade.
Durante séculos os judeus que viviam no território
que hoje conhecemos como Portugal e Espanha não tiveram maiores problemas. Mas,
com o passar do tempo, a comunidade prosperou tanto, devido principalmente, ao
grande comércio português, pois contava com a participação significativa dos
judeus. Tal situação gerou insatisfação, principalmente levando-se em conta que
as comunidades judaicas começaram a crescer muito acumulando riquezas que deixavam
os demais com muita inveja.
Somando-se a isso, apoiados na expulsão dos judeus
da Espanha (Andaluzia), tal fato culminou com a conversão obrigatória de 1497, no
reinado de D. Manuel I, quando todos os judeus que não conseguiram sair
do país foram batizados compulsoriamente, tiveram que abandonar os seus nomes e
adotar nomes cristãos (quer nomes próprios, quer de família).
A princípio, foi dado o prazo de dez meses para que
os judeus deixassem o reino. Mas, em face da evidente perda financeira e de mão
de obra especializada que ocorreria com a saída dos judeus, foi feita a
conversão forçada ao cristianismo, quando foram batizados em pé e à força,
sendo designados cristão-novo ou converso/convertido (ele e seus
descendentes), em contraposição aos cristãos-velhos. A expressão foi muito
difundida pelo Tribunal da Inquisição.
Sem permissão para o funcionamento de sinagogas,
sem rabinos reconhecidos, impedidos da leitura de textos sagrados do judaísmo,
grande parte desses cristãos novos, mesmo após a conversão, continuavam fieis
da sua religião original, o que ameaçava o catolicismo. Esses cristãos-novos
(denominados criptojudeus ou, de forma pejorativa, marranos) inventaram formas de
esconder sua convicção religiosa. E, não tiveram mais sossego. Muitos foram
perseguidos, razão pela qual fugiram para o norte da África, Países Baixos,
Brasil e Açores (lugares receptivos para os cristãos-novos por poderem praticar
suas atividades com relativa liberdade).
Em Portugal, até a última década do século XV, a
situação ainda era melhor que na vizinha Espanha, pois a partir de 1478, com a
fundação da Inquisição Espanhola, os cristãos novos viraram foco dela, que, por
óbvio, não julgava sincera a adesão forçada ao catolicismo.
Em 1492, veio o decreto de expulsão do reino caso
recusassem a conversão. Tal medida dos reis católicos, Fernando e Isabel,
buscava a unificação dos reinos de Aragão e Castela. Com isso muitos cristãos
novos castelhanos fugiram.
Apesar das conversões forçadas dos judeus para o
catolicismo, no qual se tornavam cristãos-novos, como já dissemos, estes, com
raras exceções, não se convertiam de fato; apenas se passavam por católicos
para usufruírem os mesmos privilégios dos demais cidadãos. Em sua
particularidade, viviam sua religiosidade.
O Tribunal do Santo Ofício sabia da prática do
criptojudaísmo e por isso, infiltrava-se no seio das famílias hebraicas, como
em geral eram chamadas tais famílias.
O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em
Portugal foi instituído, definitivamente, depois de diversas tentativas, pela
Bula do Papa Paulo III, em 23 de maio de 1536, isto é, quarenta anos após a
"expulsão" dos judeus das terras lusitanas, em 5 de dezembro de 1496,
por édito promulgado pelo rei Dom Manuel I. Geralmente os “crimes” condenados pela Inquisição eram
a bruxaria, bigamia, protestantismo, judaísmo, islamismo,
homossexualismo e outras “heresias”.
“O
tribunal do Santo Ofício lançou os seus tentáculos sobre o arquipélago dos
Açores em meados dos anos 50 do século XVI. De fato, em 1555, recebeu alguns
açorianos enviados presos pelo bispo de Angra. Era a "entrada" no
arquipélago de um tribunal que vinha abrindo espaço de manobra por todo o reino
e seus domínios. À leva de detidos de 1555, outras se seguiram, as quais, a par
com a finta realizada aos cristãos-novos das ilhas em 1558, fizeram de
1555-1559 um quadriénio fundamental para a afirmação do Santo Ofício nos
Açores. Em 1575-1576 realizou-se a primeira visitação inquisitorial ao
arquipélago. Esta e as duas que se lhe seguiram, a de 1592-1593 e a de
1619-1620, foram momentos fundamentais na implantação do tribunal nos Açores,
traduzindo-se por algumas prisões e pela clara e efetiva tomada de consciência,
por parte dos açorianos, de que a partir de então nada voltaria a ser como
antes”. ***
A Inquisição processou por judaísmo, entre 1557 e
1802, 112 moradores no arquipélago dos Açores. Mas, muitos foram os que o
tribunal inquiriu de outras formas, nomeadamente nas visitações. Nas de
1592-1593 e 1619-1620, foram denunciadas várias pessoas, muitos castelhanos ou
filhos e netos desses.
Em geral, eram os hábitos das pessoas que promoviam
as denúncias. Por exemplo: se guardavam o sábado, se não comiam carne de porco,
se trabalhavam aos domingos, se não observavam os demais preceitos da Igreja
Romana, de acordo pleno com suas normas. Podemos dizer que muitos
cristãos-novos e seus descendentes mantiveram seus hábitos oriundos do judaísmo,
sendo certo que embora tenham teimosamente persistido na religião de Moisés,
houve cristãos-novos e/ou seus descendentes que a Inquisição não conseguiu
pegar. Logo, o número de cristãos novos nos Açores foi muito maior do que
aqueles que foram processados pela Inquisição.
*** A INQUISIÇÃO E OS SOLDADOS DOS PRESÍDIOS AÇORIANOS (1592-1619), Paulo
Drumond Braga, https://repositorio.uac.pt/bitstream/10400.3/279/1/Paulo_Braga_p.
55-63.pdf
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